segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Francisca Clotilde

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‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 5

GÊNERO E TRAJETÓRIA BIOGRÁFICA: A HISTÓRIA DA OUSADA E
ESQUECIDA FRANCISCA CLOTILDE (1862-1935)

Luciana Andrade de Almeida
Mestranda em História Social da Universidade Federal do Ceará (UFC)

As mulheres não são como os homens – independentes entre si. As nossas almas são elas umas das outras e essa corrente enorme [...] estremece quando um elo se parte. [...] enquanto houver na terra uma mulher sacrificada, as outras não têm direito de cruzar os braços indiferentes.

Maria Lacerda de Moura (1887 – 1945), jornalista e anarquista mineira Ampliadas as áreas de investigação e pluralizados os marcos conceituais, algumas falas foram recuperadas no discurso da História, abrindo espaço para a incorporação de novas fontes, do privado e a experiência de outros setores sociais, provocando sua reescrita. Nesse contexto, os estudos de gênero procuram mostrar que referências culturais são sexualmente produzidas através de jogos de significação, relações político-econômicas e expressões de poder.

A centralidade deste estudo, nessa perspectiva, está no recolhimento das dimensões de várias naturezas da trajetória dessa personagem mulher, escritora, jornalista e professora em um determinado tempo, sem limitar-se a uma perspectiva linear e cronológica. Aqui se enfatizará a experiência de Francisca Clotilde e, através de sua trajetória, compreender sua expressão pública e investigar quais eram os lugares dela na sociedade, como era seu diálogo com intelectuais e porque, afinal, ela se tornou escritora. Nos registros que deixou, a evidência de que se tratava de uma mulher que não masculinizou
sua escrita, não buscou o universo masculino para se legitimar como escritora, nem nas temáticas ou no pseudônimo (feminino) adotado, Jane Davy. Os muitos veículos de que participou também permitem perceber a diversidade e a largueza de sua matriz de escrita que expressa, dentre outros elementos, uma
dimensão privada que emerge.

A trajetória biográfica é um gênero que vem sendo revisto e incorporado como lugar de reflexão e estudo, principalmente pela Micro-História, apresentando novas interpretações e silêncios, explicitando outras dimensões da individualidade e da relação indivíduo/sociedade. Repensar a individualidade dos sujeitos através de sua trajetória significa ampliar a percepção dos processos históricos, com um novo ponto de partida para se atingir e apreender aspectos de um período, além de dimensões sociais, históricas e políticas. Conhecer as experiências que singularizam um personagem não implica, de forma alguma, em deslocar sua vivência individual do contexto. Rupturas, permanências e mudanças ocorrem em um tempo e em uma ambiência que as tornam possíveis, nem que seja no espaço das margens.

Francisca Clotilde (19/10/1862 – 08/12/1935) é cearense de Tauá (antiga São João dos Inhamuns) e foi a primeira mulher a ser admitida para lecionar na Escola Normal, em Fortaleza, inaugurada a 22 de março de 1884. Viveu nos municípios cearenses Fortaleza, Aracati, Baturité e Redenção, teria participado da libertação de escravos no interior e, ao que consta, teve seis filhos, tendo sido casada mais de uma vez. Colaborou em jornais como O Domingo, A Quinzena, Revista Contemporânea, A República, na folha operária O Combate e no abolicionista O Libertador. Sonetos, contos, peças de teatro, poemas, traduções de folhetins de autores como Byron, Goethe e Gogol, críticas literárias e propagandas figuram em sua produção. Clotilde fez parte do movimento de cearenses precursoras da escrita feminina, em um tempo em que o ato de escrever, em si, era subversivo.

A diversidade e os níveis de tensão presentes na trajetória de vida e nos escritos de Francisca Clotilde revelam as várias contribuições que legou e os muitos interesses que a mobilizaram. Passou a infância na serra e na fazenda e, como grande parte das crianças, foi estudar em Fortaleza no Colégio Imaculada Conceição, “no qual estudavam as moças vindas do sertão, desejosas de uma instrução e uma educação melhor” (GIRÃO e SOUSA, 1987: 86). Aos 18 anos, em de 1880, casa-se com Francisco de Assis Barbosa Lima.

No Ceará, era tempo de ascensão econômica das cidades. Graças à exportação de algodão, a capital da província vivia dias de progresso e contava com calçamento, água encanada, iluminação a gás, telefone, caixas postais, bondes. O avanço também podia ser percebido no campo cultural e das letras, através da aglutinação de artistas, poetas e escritores em torno dos clubes e agremiações. No entanto, as secas de 1877 e 1879 forçaram um retrocesso nos interesses econômicos e culturais da elite de Fortaleza. Em xeque, o ideário de progresso forjado pelas elites da província. Problemas sociais e políticos emergiram, tornando-se enormes imbróglios que os discursos desenvolvimentistas e civilizatórios não puderam ocultar.

O ritmo lento e pouco imaginativo com o qual se desenrolaria a vida das senhoras era idéia que já dava sinais de desgaste, no último quarto do século XIX. O ingresso de Francisca Clotilde no magistério – dirigido e orientado exclusivamente por homens à época –, aos 20 anos de idade, é representativo do período de busca feminina por atividades, instrução e ofícios fora do ambiente doméstico. A maioria das mulheres com essa formação atuava como professora primária, uma das primeiras atividades fora do lar aceitas para as senhoras de classe média. Língua Portuguesa, Língua Francesa, Matemáticas Elementares, Geografia e História, Noções Elementares de Ciências Naturais, Pedagogia e Metodologia eram disciplinas ministradas às normalistas. Dois anos depois, em 1884, Clotilde passa a ser a primeira professora da Escola Normal no Ceará.

Zilda Menezes (2002) aponta que, apesar da permissão do ingresso de uma professora na Escola Normal, havia resistência e preconceito em relação às normalistas. Não é difícil compreender as tensões em relação à escola que visava formar educadoras. Em uma época em que a mulher deveria nortear a existência em direção a casamento e filhos, não era interessante estimular espaços para a atuação no mercado – fatalmente, elas teriam de se dividir entre o lar e a profissão. Daí a ambigüidade do papel da Escola Normal em uma sociedade que respirava progresso e civilidade, mas apresentava resistências a mudanças comportamentais, principalmente entre as mulheres.

De certo modo, o magistério foi desqualificado e convertido em extensão da tarefa doméstica e maternal, desvalorizando as mobilizações de mulheres que se articulavam em torno da instrução feminina e da necessidade deformação de professoras. Contudo, era um grupo que começava a se definir e já não podia mais ser marginalizado.

O letramento e a educação feminina no Ceará ocorriam, para algumas mulheres, em outros ambientes além da Escola Normal (a partir de 1884), como sociedades e clubes literários que reuniam a elite intelectual e ajudavam a redefinir a organização econômica, política e social da província. A década de 1880 foi um período de intensa atividade intelectual, quando começou a ser construído um repertório que poderia ajudar a repensar os caminhos de gestão da província, incluindo ideais como República, liberalismo e abolição da escravidão. O movimento era acompanhado pela ascensão da imprensa como veículo de divulgação desse ideário.

A campanha abolicionista e a proliferação de agremiações entusiasmaram algumas mulheres de letras, como Emília de Freitas, Alba Valdez, Serafina Ponte e Francisca Clotilde. Em janeiro e março de 1883, Emília de Freitas discursou para a nova sociedade abolicionista feminina Cearenses Libertadoras (instalada em 6 de janeiro do mesmo ano e dirigida por Maria Tomásia), e Francisca Clotilde publicou em “O Libertador” – principal órgão abolicionista – poemas saudando a abolição na capital cearense (24/5/1883) e no Estado (25/03/1884).

Em 1886, segundo Leal, Clotilde “integrava o Clube Literário, do qual A.D.Bezerra era um dos fundadores” (1996: 73), onde “desfruta o conceito de hábil filigranista e contista” (MONTENEGRO, 1953: 109). Do Clube – inaugurado em 15/11/1886 e cujo principal fundador foi João Lopes – participaram como sócios efetivos Antônio Bezerra, Oliveira Paiva, José de Barcelos, Rodolfo Teófilo e Francisca Clotilde, entre outros, que escreviam para a revista A Quinzena, que circulou entre 15/1/1887 e 10/6/1888. Nas reuniões noturnas, os presentes discutiam obras literárias, faziam palestras e leituras em grupo. O Clube “franqueava aos sócios, todos os dias, das 10 da manhã às 10 da noite, a leitura de jornais e revistas de Fortaleza, da Corte e demais Províncias e dos livros publicados na Corte e no estrangeiro” (OLIVEIRA, 2000: 37-8).

Desse período, datam numerosas colaborações de Clotilde nos jornais O Domingo e no abolicionista O Libertador, do qual participavam figuras de projeção, como Rodolfo Teófilo, Clóvis Beviláqua e Juvenal Galeno. Em 1886, ela redige com Duarte Bezerra e Fabrício de Barros o jornal científico e literário A Evolução. Raimundo Girão e Maria da Conceição Sousa caracterizam a participação da escritora em jornais e revistas, falando dos versos que assinava, “de teor românticoconfessional ou paisagístico, já em provas, nesta incluída e dramática, a de ficção e também de um ativo e atrevido jornalismo ideológico e político” (GIRÃO e SOUSA, 1987: 86). Sua produção literária ainda inclui Coleção de Contos (“belo romancete de propaganda abolicionista”, na opinião de Barão de Studart), 1897; Noções de Aritmética, 1889; A Divorciada, 1902; Fabiola (drama sacro em três atos) e Pelo Ceará (série de artigos editados na Folha do Comércio, por volta de 1911).

A literatura representava um campo seleto para as mulheres e as críticas nem sempre eram receptivas(1). A maioria das literatas brasileiras da época acumulava atividades de escrita, trabalho didático – mais ou menos profissionalizado – e o jornalismo, na divulgação das muitas propostas de teor feminista, com certo engajamento político. Um dos primeiros jornais femininos foi, possivelmente, segundo Buitoni (1981), o carioca O Espelho Diamantino, de 1827. Desde então, outros periódicos(2) foram fundados com a intenção de tratar questões ligadas às mulheres e assimilaram problematizações de caráter político, incluindo o direito ao voto.

As mulheres oscilavam entre tradição e modernidade em relação à condição feminina e, às vezes, escreviam de modos distintos – defendendo ora um ponto de vista conservador, ora idéias avançadas. Algumas rompiam com estruturas sociais que lhes eram impostas na vida pessoal, mas não se permitiam libertar na escrita ou vice-versa. A atuação de Emília de Freitas (1855-1908), Serafina Pontes (1850-1923), Alba Valdez (1874-1962), Ana Facó (1855-1926), Ana Nogueira Baptista (1870-1965), Henriqueta Galeno (1887-1864), Adília de Luna Freire (s/d), as irmãs Abigail e Maria Sampaio (s/d), Amélia e Olga Alencar (nascidas pelos anos 1880), Francisca Clotilde (1862-1935) e outras tantas apresentava contradições, pluralidades que não podiam ser abarcadas em um conceito como “feminismo”, mas, talvez, “feminismos” (SILVA, 2002).

1 Cf. SOIHET, Rachel. Sutileza, ironia e zombaria: instrumentos no descrédito das lutas das mulheres pela emancipação
In: PUPPIN, Andréa Brandão, MURARO, Rose Marie (Org.). Mulher, gênero e sociedade. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 2001.
2 Entre 1850 e 1910 a imprensa escrita e dirigida por mulheres tornou-se numerosa, com dezenas de jornais e revistas
editados em várias regiões do país. São exemplos: O Jornal das Damas (Pernambuco), O Recreio das Senhoras (Bahia); O
Bello Sexo (Rio de Janeiro); A Violeta Fluminense (Rio de Janeiro), Eco das Damas (Rio de Janeiro), A Família (São Paulo /
Rio de Janeiro), A Mensageira (São Paulo), O Feminista (Alagoas), O Jornal das Damas (Pernambuco), O Escrínio (Rio
Grande do Sul), O Corimbo (Rio Grande do Sul).


Mesmo imprimindo em sua obra imagens e conceitos aparentemente tradicionais em relação à produção de escritoras do mesmo período, é possível entrever a busca de espaços na qual Clotilde se empenhava. Em seus textos, repletos de flores e belas descrições, a reapropriação do “tradicional” se opera na perspectiva de negociação, nas margens. “Mesclando imagens e estereótipos já consagrados pela sociedade do período, como a imagem da mulher santa, caridosa, bondosa e com deveres sagrados, Francisca Clotilde vai pouco a pouco tentando inserir a mulher no mundo público e na participação política” (SILVA, 2002: 62). Em sua trajetória, é possível perceber os limites do campo social e relações entre normas e práticas, expressando possibilidades de atuação dos atores históricos no período. Clotilde situava-se na liminaridade, entre a ruptura e o status quo. Incorporava elementos da luta feminina que surgia às estruturas existentes de uma sociedade eminentemente patriarcal e ainda pouco habituada à presença das mulheres nos campos públicos da política e da literatura. Colares ressalta que chega a espantar “o porte de suas ousadias, no campo do jornalismo, onde a palavra da escritora, que é de boa tessitura estilística, é posta a serviço de um ideário singular, quando não inteiramente conflitante com os preconceitos sociais então vigentes na sua província” (1977:56).

Como uma nova forma de sociabilidade e reflexão delas sobre si mesmas, a literatura torna-se ferramenta de inserção da mulher no ambiente social, no qual valores como maternidade e casamento começam a ser questionados e, principalmente, rivalizados por uma série de novas idéias. No século XIX, a escrita se apresentava atrelada ao saber. Ambos estavam relacionados, de certo modo, ao poder e eram “forma de dominação, ao descreverem modos de socialização, papéis sociais e até sentimentos esperados em determinadas situações” (TELLES, 1997).

Em abril de 1893, Francisca Clotilde abre seu próprio colégio em Fortaleza: o Externato Santa Clotilde, que funcionou por apenas três anos (STUDART, 1910: 279). Não se sabe o motivo de seu rápido fechamento nem da volta da escritora ao interior, dois anos depois. Uma possibilidade seria que a provável separação do segundo companheiro, Antônio Duarte Bezerra, tivesse motivado seu retorno.

Ele fora professor de Ciências Matemáticas em Fortaleza e capitão reformado em 1886, por motivos de doença. Por essa razão, teria passado a se dedicar às atividades intelectuais e, como Clotilde, redigiu um livro didático para a Escola Normal, “Elementos da Aritmética”. Há relatos de envolvimento de Duarte Bezerra com bebidas e jogos. Segundo Abelardo Montenegro, “Ninguém [...] precisou mais do divórcio do que Clotilde” (1953: 111). Ele afirma que Bezerra enlouqueceu e foi internado no Asilo de Alienados do Rio, de onde fugiu. “Clotilde desejava ardentemente construir um novo lar. Não podia, pois não sabia se o marido vivia ou não. A sua inteligência foi cada vez mais se deixando envolver pelos tentáculos do misticismo” (1953: 111). Silva afirma que a relação dos dois “[...] rendeu uma série de preconceitos e pequenas lutas diárias travadas em uma sociedade onde as mulheres deviam se resguardar e se resignar na manutenção de um casamento, mesmo sem amor, até o fim dos seus dias” (2002: 60). Naquele tempo, era importante para a mulher manter o nome de senhora “honesta e respeitável [...] numa sociedade que prezava as aparências e as posições sociais” (2002: 60).

A mais conhecida obra de Francisca Clotilde é celebrizada, em parte, por sua temática e pelo esquecimento que lhe foi imposto. Na introdução de A Divorciada (1902), a autora apresenta o romance como “[...] uma história singela de duas criaturas que se amaram com pureza, e as quais o destino torturou acerbamente antes de dar-lhes a felicidade almejada” (CLOTILDE, 1996: 81-2). A publicação foi recebida com indiferença, como aponta Otacílio Colares: “[...] o estabelecimento de uma espécie de cinturão de gelo, um clima pior que o de combate – o da indiferença total e mesmo criminosa, porque significou omissão de toda a geração contemporânea da autora” (1977: 59-60)
A narrativa fora escrita cerca de cinco anos após a mudança de Clotilde de Fortaleza para Redenção (1897), onde é ambientada parte da história. Maneira de revelar e marcar sua trajetória sem se expor diretamente: reminiscências evidentes da vida da escritora podem ser encontrados no romance, que, pressupõe-se, tem características autobiográficas, percebidas em detalhes como o casamento quando muito jovem, os vícios do marido, a mudança da cidade para o interior, o estigma da mulher separada, a infelicidade de se perceber solitária e com filhos para criar. O apreço de Artur, marido da protagonista Nazaré, por jogos e bebidas remete aos relatos sobre Duarte Bezerra. Assim como Nazaré, Francisca Clotilde parece ter suportado os sofrimentos impostos pelo vício, em nome do amor e de seus filhos.

O problema biográfico no âmbito da História traz a tona o oficio do historiador e sua relação com a narrativa literária. Através da construção do discurso, é possível apreender indícios esparsos de atos e palavras do cotidiano existentes, sem estabelecer em torno deles esquemas de racionalidade limitados e, muitas vezes, anacrônicos. A narrativa – nem sempre linear – permite abrigar em seu interior a extrema fragmentação da biografia individual em múltiplos tempos que não seguem itinerário coerente ou determinado e é repleto de idas e vindas, ambigüidades em ações e pensamentos dos atores na superfície social.

O que se apreende é que o título do romance e a história pessoal da escritora se entrelaçam e são bem mais polêmicos que o enredo da obra em si. Como se o título, a primeira vista, “prometesse” ao leitor a história de uma heroína “feminista e avançada”. O enredo, no entanto, apresenta-se mais conservador que o esperado e não rompe com o poder patriarcal. A iniciativa do divórcio, aqui, é tomada pelo homem da casa, pelo pai de Nazaré. A protagonista, aparentemente resignada, “depende” da vontade do pai e confia na providência divina para solução dos problemas. “Não desgostaria o pai casando contra a vontade dele; mas também não se sacrificaria aceitando por marido um homem que não amasse. Estava sempre a ouvir dos graves inconvenientes de um casamento sem amor” (CLOTILDE, 1996: 133). Mas será que a “transgressão” de Clotilde não estava exatamente na escolha do título provocador e na escrita do romance com temática tão controversa para a época? Para Colares, “É interessante verificar como Francisca Clotilde, nos idos do princípio desde
século, encarava o divórcio como solução tão lógica e plausível” (1977: 76). Rompendo com algumas “verdades” estabelecidas na época, preconceitos e conveniências sociais, sua narrativa mostra a importância do casamento com um amor desinteressado, espontâneo e eterno. Para Abelardo Montenegro, A Divorciada “analiza êle os problemas do lar, a função do filho no casal, o casamento por conveniência, a intromissão dos pais no ato da escolha. Tudo é examinado à luz da moral dominante. A mulher cearense ainda tem o esposo escolhido pelos pais. A regra geral, entretanto, vai cada vez mais cedendo às exceções” (1953: 110).

Várias escritoras – e esse pode ser o caso de Clotilde – encontraram nos romances, na construção de personagens e nesses novos cenários, a oportunidade de escrever suas inquietações e críticas, que não poderiam ser expostas publicamente em texto assinado de próprio punho. Modo de se resguardar, permitia a expressão através de corpo e voz dos personagens, seguindo a lógica dos pseudônimos.

Há que se problematizar, através do discurso narrativo (que caracteriza a trajetória biográfica), os silêncios e vozes deixados, analisados na perspectiva de permissão: Clotilde também se produziu ao público, através da escrita pública. Em suas memórias públicas e privadas (como seu diário), a dimensão da posteridade e a possibilidade de nos “deixar” perceber as relações que permeavam os universos onde atuou e as decisões ou opções tomadas por ela. Como em uma “biografia autorizada”, ela oculta e exibe determinados aspectos – nos permite ver como quer ser mostrada e como gostaria de ser lembrada. A abordagem biográfica – que, composta de múltiplos traços, esboça uma trajetória – focaliza a experiência do sujeito, não se preocupando em reconstituir sua “vida”. Ela emerge como instrumento para que o pesquisador perceba a importância das ações individuais, problematize e historicize o cotidiano, os sujeitos e suas experiências, ampliando a compreensão da História e sua escrita.

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